domingo, 27 de novembro de 2016

Nossas vivências em Cuba

Ontem, aos 90 anos, morreu Fidel Castro. Lembrei-me então de tudo que vivi em Cuba, em 2000, junto de amigas queridas num estágio educacional que participamos. Lembrei-me de todas as delícias e desafios dessa viagem, das certezas e incertezas que desde aquela época nos povoam. Lembrei-me do texto abaixo que fizemos juntas (eu, Marili Dias, Andrea Almeida, Edna Teles e Isis Longo), que conta um pouco do que vivemos durante nossa viagem, e das reflexões que continuaram e resultaram no livro "Imagens de Cuba, a esperança na esquina do mundo", Marcos Ferreira Santos (org.), Editora Zouk, 2002.





Nossa vivência em Cuba

Antes de entrarmos nos detalhes da viagem é importante que vocês, leitores e leitoras, saibam que o grupo maior com o qual viajamos constituía-se de 26 pessoas de diferentes áreas: pedagogia, psicologia, história, geografia, filosofia, professores e professoras universitários, entre outras áreas. O programa era oficial e durante duas semanas com visitas programadas em diferentes instituições educacionais e, também, em um hospital psiquiátrico.

A terceira semana também era para ficarmos em Havana no instituto pedagógico onde estávamos desde o primeiro dia. Mas nós, Edna, Isis, Marili, Andrea e Juliana cancelamos a estada, pois achamos que os discursos das instituições as quais visitamos estavam muito "oficiais".

Tivemos algumas conversas e decidimos que se quiséssemos, realmente, conhecer o povo cubano, sua cultura, como vivem, o que pensam a respeito das coisas de seu país, teríamos que ir para as ruas e para as casas dos cubanos, transitar pelo cotidiano do povo. Afinal, as transgressões também possuem seu valor pedagógico!

Atenção, queridos leitores e queridas leitoras, convidamos vocês agora para uma viagem por cenas "muy esquisitas" do cotidiano da ilha de Fidel vividas pelo grupo durante quatro semanas.

Vocês conseguem imaginar o que é participar de uma passeata em Cuba? Nós também não, até o dia em que nos deparamos com uma convocação nacional para a marcha contra "la ley asesina".

Diz a lenda... quem quem chega "nadando" de Cuba aos Estados Unidos tem garantido um visto permanente, casa, comida, emprego, dólares e todas as "benesses" do capitalismo. Imaginem o alvoroço que tal estímulo causa, principalmente nos jovens. Pois é. Precisamente no dia em que estávamos lá, dois jovens morreram afogados tentando tal façanha.

Por conta disso o comandante Fidel convocou todo o povo cubano para ir às ruas contestar contra tal fato. Nós, professoras brasileiras sedentas por passeatas, afinal, estávamos em férias, não pudemos resistir em participar de tal evento: a primeira passeata do milênio em Cuba, e o que é melhor?... contra os Estados Unidos. 

Tudo nesse dia estava fechado porque era um dia de paralisação nacional. Qual não foi a nossa surpresa ao ver milhares de pessoas (crianças, jovens, idosos, soldados...) num fluxo contínuo de uma caminhada por todos o trajeto do Malecón sem que houvesse um carro de som ou discursos de lideranças. Havia palavras de ordem no decorrer de toda passeata como "abajo la ley asesina!", agitação de bandeiras nacionais e um sentimento de dever cumprido do povo que estava presente.

E em se tratando de povo... "eta" povo caliente e animado!

Uma das coisas mais marcantes para "nosotras", em toda a nossa passagem por Cuba, foi a identidade dos costumes latinos: a dança, a sensualidade, o carinho, a hospitalidade, a curiosidade, o gingado e... pasmem:... as novelas da Globo!!!!!!!

Imaginem vocês que as novelas da Rede Globo são um grande sucesso entre cubanos e cubanas. As pessoas nos perguntavam sobre "el Rey de Ganado". Como já sabíamos o que aconteceria no final da novela que estava sendo transmitida na época, tal final tornou-se para nós objeto de barganha em muitas barracas de feiras de artesanato. 

A pergunta que não quer calar entre nós é: como uma sociedade que atingiu um nível tão alto de instrução e educação por meio de um governo que prima por valores de igualdade e solidariedade vive essa contradição? Como este mesmo governo crítico em relação ao capitalismo pode transmitir em rede nacional essa programação tão capitalista como as novelas brasileiras?

E o que é mais intrigante: como o povo se fascina tanto por elas! Chegam a ponto de acompanhar por um ano a trama das novelas, pois elas são transmitidas, curiosamente, em dias alternado: "dia si, dia no".

Vai entender, né!? Será que Freud explica? Ou Che?

E, mais do que uma contradição, imaginem vocês o que é estar em um país com valores e convicções tão fortes quanto a igualdade de classe social, a importância dos heróis nacionais, da revolução, da consciência das dificuldades causadas pelo embargo econômico, tudo isso presente no imaginário e no discurso de todo cubano que encontramos e tivemos a oportunidade de conversar; e ao mesmo tempo, encontrarmos em uma mesma cidade, como La Havana, por exemplo, distorções sociais como no Brasil (em menores proporções, é claro!) pois o bairro de Miramar em La Havana se equipara ao bairro do Morumbi em São Paulo (alta classe) e o bairro de Cotorro equivaleria ao Capão Redondo (periferia).

Seguindo "a linha da contradição" o que quer dizer da estratégia econômica de fomentar o turismo capitalista de Varadero com o objetivo dos "bienvenidos dolares"? O Turismo, ao mesmo tempo, que alimenta a economia do país provoca uma degradação predatória dos costumes, dos próprios valores que lhe são mais caros. Tal prática promove a demanda de um "mercado par alelo" e mistifica a ideia de felicidade que fica associada ao ter dinheiro para concretizar o sonho de consumismo.

Prestem atenção, caros leitores e leitoras, pois dissemos CON-SU-MIS-MO, e não "comunismo".

Mas, se lhes perguntarem: em qual país existe acesso e permanência na Educação em todos os níveis de ensino com a mesma qualidade para todos? Em qual país a saúde não é uma mercadoria e é pública e gratuita para todos? Em qual país todas as pessoas têm uma moradia e dignidade de sobrevivência? Para nós a resposta é Cuba!

Tivemos a oportunidade de conhecer muitas escolas dos diversos níveis e modalidades de ensino, entre elas, escola rural, escolas especiais (dificuldade de aprendizagem, conduta, deficiências), escolas profissionalizantes, universidades, círculos infantis, escolas politécnicas, escolas de formação de professores e atividades educativas no Hospital Psiquiátrico de Havana.

Para nós, enquanto reflexão de grupo, a universalização da Educação é um valor, bem como, o caráter dado ao processo de formação de professores que se baseia nos ideias humanistas, na perspectiva do engajamento político-ideológico dos educadores e educadoras e na sua consciência histórica, isso tudo contemplado no sistema educacional cubano.

Nós, como educadoras, tivemos experiências tanto positivas quanto negativas ao conhecermos a Educação em Cuba, e vocês leitores e leitoras farão agora seus próprios exercícios de análise e reflexão para tirar suas próprias conclusões.

O que você acha de uma criança indisciplinada em sala de aula ter para ela uma escola, especialmente, para aprender regras de conduta? O que você acha de uma criança com dificuldades de aprendizagem ter uma escola, especialmente, para que essas dificuldades sejam trabalhadas? O que você acha das pessoas com tratamento psiquiátrico terem como prescrição médica aulas de teatro, artesanato, música, danças e esportes? O que você acha do currículo oficial conter práticas como agricultura?

Essas e muitas outras questões permearam e permeiam as nossas discussões sobre Cuba.

Assim, ao chegarmos ao Brasil começamos a conversar sobre a importância de socializarmos as informações e as pesquisas que cada uma de nós realizou. Pensamos em organizar um grupo de estudos sobre educação comparada e achamos pertinente organizar o material de que dispúnhamos (vídeos, fotos, textos, anotações de conferências, entre outras coisas) a fim de abrir um espaço de estudos e discussão.

Foi com esse intuito que escrevemos o projeto "Imagens de Cuba" (CICE/FCEx/USP), que o querido professor Marcos Ferreira, um "manate convicto da cultura lationamericana" aceitou orientar e que, portanto, ao ser aprovado, agora ganha corpo no conjunto de atividades do Ciclo de Debates "Imagens de Cuba" (2002), vídeo, exposição e o presente livro.

É o início de uma longa etapa, e esse é um pedaço de objetivo que começa a ser realizado. Vocês, queridos leitor e leitora, estão convidados a fazer parte desse grupo de pesquisa e reflexão permanente sobre Cuba.

Como dizia Che Guevara, "Hasta Siempre!"


Hoje, relendo esse texto me aproximo muito dessa época, meus 20 anos, e de meu grande entusiasmo em transformar o mundo e de uma tomada de consciência maior a respeito de como todas as coisas são cheias de beleza e de inevitáveis contradições. Uma época em que era tão menina e tão mulher. Hoje, continuo a mesma, em parte; em outra mudei bastante, naturalmente.

Que bom que vivi essa experiência com muita intensidade para ganhar maior dimensão de que as coisas são muito complexas, e por isso mesmo não devem ser julgadas precipitadamente. Lá, vi que a revolução cubana tem uma importância grande na vida daquela população como na de outros países, por diversas razões, e que ainda assim ela foi conservadora em vários aspectos como com a liberdade dos homossexuais. Nessa experiência, ganhei maior noção de que as relações humanas e tudo o que construímos a partir delas são o que importam. Lá, fiz grandes amigos, mais que isso, desenvolvi empatia para com o outro, tão diferente e tão semelhante de mim. A partir dela, desenvolvi maior serenidade diante da vida, de que escolho meu papel no mundo, ainda que as coisas não estejam o tempo todo ao meu controle. Lá, percebi o quanto a liberdade é preciosa e todos merecem tê-la, e por isso torci para que os cubanos e cubanas pudessem avançar nesse sentido - e nós também, pois compreendi que até quem a tem como direito assegurado, nem sempre a exerce plenamente. E acima de tudo, ainda que tenha mudado a minha opinião sobre um monte de assunto (ainda bem! Pois estou viva, em movimento!), mantive minha esperança de que um mundo mais humano - para todos, é possível.

Marili (em memória), Edna querida, Isis sumida e Andrea amada, saudades gigante! Que as nossas conquistas sejam sempre as mais belas e mais justas, como me escreveu um dia a Isis!

Um comentário:

  1. Que saudade Juliana, de todas vocês e dessa linda experiência que tivemos em Cuba. Os muitos aprendizados que tive lá levarei sempre comigo. As lembranças e as amizades também. Obrigada por relembrar e me fazer (re)viver.

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