Quando
criança adorava brincar de escolinha. Na época tinha uma lousa enorme e junto
de meus irmãos, primos e amigos me divertia para valer nessa brincadeira.
Lembro-me que ficávamos um tempão para conseguirmos nos decidir - em meio a
entendimentos e desentendimentos sobre quem iria participar, quem iria ser o
que, que aula viveríamos, em que espaço, quais combinados eram importantes e
muitas outras questões, algumas simples e outras complexas tal como a cena que
desejávamos reproduzir e fantasiar. Mas o mais interessante e marcante dessa
história é que tenho a sensação de que essa já era a brincadeira, pois quando
finalmente chegávamos a um acordo logo começávamos alguma outra como se aquela
tivesse perdido a graça e a ideia de uma brincadeira nova despertasse em nós a
necessidade, a urgência e o prazer de vivenciar novamente todo o processo de
sua elaboração.
Por muito
tempo me perguntei qual era então a verdadeira graça dessas brincadeiras. Hoje, após muitas experiências e reflexões em meu percurso,
percebo que para mim a graça era exatamente estar no meio de gente querida (e
às vezes não tão querida assim): conversando, negociando, construindo, pois
dessa maneira me sentia parte do grupo mesmo que às vezes precisasse marcar
posição contrária a todos os membros. Em outras palavras: durante toda a
construção do jogo simbólico de minha infância estava com gente, agindo como
gente, e virando gente. Pensando e sentindo junto. Pertencendo a um grupo,
criando uma identidade coletiva como também individual.
Assim,
quando remexo em minhas memórias “gentes e gentes” povoam minha cabeça e me
enchem de sensações de todos os tipos. Gente que me fez bem, gente que me fez
mal, gente que quis me fazer o bem, mas me fez mal, gente que quis me fazer o
mal, mas me fez bem, gente que fiz o bem, gente que fiz o mal, que me
envergonho, gente que tive uma segunda chance, gente que só quero ver no
facebook e olhe lá, gente que ouvi, gente que nunca dei atenção, gente que me
inspira, gente que desprezo, gente que amei, abracei, gente que nunca consegui
chegar perto, gente que um dia crio coragem para dizer tudo que sinto, gente
que dei risada junto, gente que chorei junto, gente que construí junto, gente
que sonhei a mesma utopia, gente que construí parceria, gente que já sabe o que
sinto só pelo meu olhar, gente que me conhece tão bem, gente que não sabe nem que
eu existo, gente que gritei, gente que silenciei, gente que ensinei, gente que
aprendi, gente no meio de tanta gente, gente única diferente de tanta gente,
gente que consegui enxergar, gente que não me enxergou, gente que ainda quero
abraçar, gente que tenho saudades, que lembro todos os dias, gente que já me
esqueci, gente que luta, gente que precisa ser defendida, acolhida, respeitada,
gente para ensinar a ser gente, gente que dá orgulho da gente ser gente.
E
foi me formando gente que me dei conta de que a tarefa de educar é extremamente
necessária em nossa sociedade e por isso minha escolha em cursar Pedagogia. Mas
preciso confessar que essa decisão também teve um gostinho de rebeldia na época
quando meus pais me questionaram. Ainda bem que algo que na época ainda nem
conseguia explicar direito já estava pulsante em mim: meu desejo e necessidade urgente
de estar com o outro, de me construir a partir desta relação, expressando
minhas ideias, considerando (na medida do possível) a dos outros ou então me
rebelando frente a estas e assim construindo uma vida mais bacanuda.
Quando
comecei a trabalhar com gente pequena então vi minhas escolhas ganharem ainda
mais sentido. Minhas inquietações foram ao mesmo tempo preenchidas, mas
colocadas num outro lugar: o de professora de um grupo em formação, o que exige
de mim os cuidados devidos para fomentar esse processo. Mas certamente a
maravilha de tudo é poder diariamente estar em contato, em construção e em
formação com gente faladora, perguntadora, curiosa, corajosa, temerosa, ousada,
tranquila, agitada, inteira, potente, presente, sensível. Gente que precisa de
gente e especialmente da gente, gente que me diz quem eu sou, quem somos, e me
pergunta para onde vamos, gente que me desatina com perguntas que não tenho
respostas, gente que adora as minhas perguntas, gente que preciso assegurar de
não precisa saber de todas as respostas, gente que preciso ser modelo, referência,
gente que exige que eu me supere constantemente, gente a quem eu digo que podem
ser o que quiserem, sempre se esforçando para fazerem o melhor possível, gente
que não me deixa não olhar, gente me ajuda a focar, construir, imaginar, criar,
gente da urgência, do olho no olho, gente que precisa de afeto e limite, de
empurrão e aconchego, gente que me inspira, me emociona, me desequilibra, me
empurra ladeira abaixo, mas me ergue as mãos, gente diferente que demoro para
conseguir compreender, aceitar, lidar, gente vai comigo para o meu fim de
semana, gente que preciso de umas férias, gente que sinto falta, gente que
sentirei falta quando as próximas férias chegarem, gente que eu reconheço quando
retomo minhas memórias, gente que fui, gente que gostaria de ter sido, gente de
hoje, gente que eu fui ontem e gente que quero ver brilhar amanhã.
“Devemos
educar a todos... Mas parando em cada um.” (Luiza Christov)
É
isso que ficou mais forte para mim da aula com Luiza. Viramos gente entre a
gente e acreditamos que podemos ser pessoas melhores por meio dos nossos
encontros. É essa a nossa utopia e nossa missão maior e, portanto, é isso que
diariamente nos propomos a fazer e sentir em nossas relações e trabalho com as
crianças experimentando intensamente todas as delícias e desafios dessa tarefa.
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