quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Lembranças que servem de lição: virando gente e formando gente

Quando criança adorava brincar de escolinha. Na época tinha uma lousa enorme e junto de meus irmãos, primos e amigos me divertia para valer nessa brincadeira. Lembro-me que ficávamos um tempão para conseguirmos nos decidir - em meio a entendimentos e desentendimentos sobre quem iria participar, quem iria ser o que, que aula viveríamos, em que espaço, quais combinados eram importantes e muitas outras questões, algumas simples e outras complexas tal como a cena que desejávamos reproduzir e fantasiar. Mas o mais interessante e marcante dessa história é que tenho a sensação de que essa já era a brincadeira, pois quando finalmente chegávamos a um acordo logo começávamos alguma outra como se aquela tivesse perdido a graça e a ideia de uma brincadeira nova despertasse em nós a necessidade, a urgência e o prazer de vivenciar novamente todo o processo de sua elaboração.

Por muito tempo me perguntei qual era então a verdadeira graça dessas brincadeiras. Hoje, após muitas experiências e reflexões em meu percurso, percebo que para mim a graça era exatamente estar no meio de gente querida (e às vezes não tão querida assim): conversando, negociando, construindo, pois dessa maneira me sentia parte do grupo mesmo que às vezes precisasse marcar posição contrária a todos os membros. Em outras palavras: durante toda a construção do jogo simbólico de minha infância estava com gente, agindo como gente, e virando gente. Pensando e sentindo junto. Pertencendo a um grupo, criando uma identidade coletiva como também individual.

Assim, quando remexo em minhas memórias “gentes e gentes” povoam minha cabeça e me enchem de sensações de todos os tipos. Gente que me fez bem, gente que me fez mal, gente que quis me fazer o bem, mas me fez mal, gente que quis me fazer o mal, mas me fez bem, gente que fiz o bem, gente que fiz o mal, que me envergonho, gente que tive uma segunda chance, gente que só quero ver no facebook e olhe lá, gente que ouvi, gente que nunca dei atenção, gente que me inspira, gente que desprezo, gente que amei, abracei, gente que nunca consegui chegar perto, gente que um dia crio coragem para dizer tudo que sinto, gente que dei risada junto, gente que chorei junto, gente que construí junto, gente que sonhei a mesma utopia, gente que construí parceria, gente que já sabe o que sinto só pelo meu olhar, gente que me conhece tão bem, gente que não sabe nem que eu existo, gente que gritei, gente que silenciei, gente que ensinei, gente que aprendi, gente no meio de tanta gente, gente única diferente de tanta gente, gente que consegui enxergar, gente que não me enxergou, gente que ainda quero abraçar, gente que tenho saudades, que lembro todos os dias, gente que já me esqueci, gente que luta, gente que precisa ser defendida, acolhida, respeitada, gente para ensinar a ser gente, gente que dá orgulho da gente ser gente.

E foi me formando gente que me dei conta de que a tarefa de educar é extremamente necessária em nossa sociedade e por isso minha escolha em cursar Pedagogia. Mas preciso confessar que essa decisão também teve um gostinho de rebeldia na época quando meus pais me questionaram. Ainda bem que algo que na época ainda nem conseguia explicar direito já estava pulsante em mim: meu desejo e necessidade urgente de estar com o outro, de me construir a partir desta relação, expressando minhas ideias, considerando (na medida do possível) a dos outros ou então me rebelando frente a estas e assim construindo uma vida mais bacanuda.

Quando comecei a trabalhar com gente pequena então vi minhas escolhas ganharem ainda mais sentido. Minhas inquietações foram ao mesmo tempo preenchidas, mas colocadas num outro lugar: o de professora de um grupo em formação, o que exige de mim os cuidados devidos para fomentar esse processo. Mas certamente a maravilha de tudo é poder diariamente estar em contato, em construção e em formação com gente faladora, perguntadora, curiosa, corajosa, temerosa, ousada, tranquila, agitada, inteira, potente, presente, sensível. Gente que precisa de gente e especialmente da gente, gente que me diz quem eu sou, quem somos, e me pergunta para onde vamos, gente que me desatina com perguntas que não tenho respostas, gente que adora as minhas perguntas, gente que preciso assegurar de não precisa saber de todas as respostas, gente que preciso ser modelo, referência, gente que exige que eu me supere constantemente, gente a quem eu digo que podem ser o que quiserem, sempre se esforçando para fazerem o melhor possível, gente que não me deixa não olhar, gente me ajuda a focar, construir, imaginar, criar, gente da urgência, do olho no olho, gente que precisa de afeto e limite, de empurrão e aconchego, gente que me inspira, me emociona, me desequilibra, me empurra ladeira abaixo, mas me ergue as mãos, gente diferente que demoro para conseguir compreender, aceitar, lidar, gente vai comigo para o meu fim de semana, gente que preciso de umas férias, gente que sinto falta, gente que sentirei falta quando as próximas férias chegarem, gente que eu reconheço quando retomo minhas memórias, gente que fui, gente que gostaria de ter sido, gente de hoje, gente que eu fui ontem e gente que quero ver brilhar amanhã.


“Devemos educar a todos... Mas parando em cada um.” (Luiza Christov)


É isso que ficou mais forte para mim da aula com Luiza. Viramos gente entre a gente e acreditamos que podemos ser pessoas melhores por meio dos nossos encontros. É essa a nossa utopia e nossa missão maior e, portanto, é isso que diariamente nos propomos a fazer e sentir em nossas relações e trabalho com as crianças experimentando intensamente todas as delícias e desafios dessa tarefa.



PS1: Melhor para essa reflexão por aqui, porque se começar a falar sobre ‘gente que nasce da gente’ aí não paro mais... rsrsrs


PS2: Este texto estava em processo de elaboração desde a última sexta-feira em que Luiza Christov foi à minha escola colaborar com nosso contínuo processo de formação. Ontem precisei entregar formalmente algum retorno à coordenação sobre o que essa aula/encontro havia provocado em mim e, uma vez cobrada, resolvi aproveitá-lo, reorganizando-o e dando um fim provisório nele... Em outro momento ainda quero me aprofundar mais nas tantas questões que ela nos trouxe, mas que já fazem parte de mim, de nós, de nossa história, nossa natureza, nossos laços...


PS3: Luiza Christov possui mestrado em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1992) e doutorado em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Atualmente é prof. assistente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Realizou estágio de pós doutoramento junto à Universidade de Barcelona sob a orientação do prof.dr. Jorge Larrosa Bondia e junto ao Teachers College da Universidade de Columbia, sob a supervisão da profa. dra. Mariana Souto Manning. Foi assistente de pesquisa da profa. Dra. Bernardete Gatti, junto à Fundação Carlos Chagas. Leciona Psicologia da Educação e Didática em nível de graduação e atua também junto ao mestrado em Artes do Instituto de Artes da Unesp. Colabora com a Secretaria Estadual da Educação de São Paulo em diferentes projetos de formação de professores e com a rede SESI de ensino em São Paulo. Lidera o grupo de pesquisa Arte e Formação de professores, cujas pesquisas foram publicadas em 2012 pela Editora Porto de ideias. Lidera o grupo de pesquisa Arte e Formação de Educadores. Orientou 21 dissertações de mestrado defendidas e orienta 2 doutorados em andamento. Coordena o Programa de Bolsas de Iniciação à Docência do Instituto de Artes da Unesp. fonte: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4790180E1





Nenhum comentário:

Postar um comentário