terça-feira, 7 de abril de 2015

Meninas e seus corpos... livres!

Cá estou, numa tarde em que deveria trabalhar em casa, mas não consegui. Porque hoje ganhei uma companheira: Bebel que está "de molho". Brincamos, brincamos e brincamos, que delícia de menina!

Depois, fiquei um tempão tentando ajuda-la a adormecer, minha menina que assim como Mateus adora um chamego em meus cabelos, para que ela descansasse e eu pudesse fazer minhas coisas (rs). Mas como sempre, desde que meus filhos eram bebezinhos, assim que eles dormem, ao invés de eu me libertar, como gostaria e precisaria, me vejo presa à cena desses seres dormindo, entregues, plenos.

  

 

"Do lugar onde estou já fui embora."
(Manoel de Barros)


São em momentos como esse, ao ver meus pequenos longe de seus corpos, envoltos por lembranças e sonhos, vivendo a plenitude do momento que também consigo me ver longe de mim, preenchida por meus pensamentos, sentimentos, memórias e desejos num verdadeiro encontro comigo mesma, revendo minhas escolhas e tudo que vivi até agora para presenciar essa cena tão sublime.

  

Dizem que tudo o que buscamos, também nos busca e, se ficarmos quietos, o que buscamos nos encontrará.
Há algo que leva muito tempo esperando por nós. Enquanto não chega, nada faça. Descanse. Você verá o que acontece enquanto isto.
Desejo que hoje você experimente paz dentro de si, que confie que você se encontra exatamente onde deve estar, que não se esqueça das possibilidades infinitas que nascem da confiança em si mesma e nos outros, que utilize os dons que recebeu, e que
transmita, aos outros, o amor que lhe foi dado.
Desejo que você esteja feliz consigo mesma pelo que você é. Deixe esta sabedoria assentar-se em seus ossos e deixe que sua alma cante, baile e ame livremente. Está aí para cada uma de nós.

E dance...
Sobretudo, dance...

Clarice Pinkola Estès. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999.


Talvez por isso, paradoxalmente, é quando me encontro desse jeito, longe de mim, que mais perto estou de mim mesma, pois tudo me faz sentido, mesmo as vivências sendo experimentadas por meio de muitas contradições: sou forte e sou frágil, sou pequena e sou grande, sou confiante e sou medrosa, sou certeza e sou dúvidas, sou poderosa e sou incompleta, sou grata e sou 'quero mais', sou tranquila e sou pilhada, sou única e sou igual, sou a mesma e sou diferente, sou uma e sou muitas. Em meio a meus devaneios começou a passar na televisão (tem no 'youtube' também) "Eu Maior", o qual toda vez que assisto eu reparo em alguma coisa nova. Dessa vez, olhando a TV e minha Bebel, a fala de Vanete me chamou a atenção:




Além de toda pertinência, força e beleza do que Vanete fala, me lembrei agora, vendo minha menina dormir, de quando fomos a uma consulta médica de rotina e Bebel fez o maior chororô do mundo para a médica não examiná-la.

Isabel é um dengo só, quando quer, porque quando precisa ou deseja ela mostra  toda sua obstinação. Confesso que por mais que eu fique incomodada com esse seu jeitão (às vezes chega a me enfrentar, quando coloco limites), no fundo, fico admirada por sua determinação em marcar seus desejos. No episódio da consulta, não tendo, aos nossos olhos, a necessidade de uma colocação tão firme fomos a ajudando a relaxar, o que não aconteceu, e a muito custo ela deixou ser examinada em meus braços. Depois, em casa, conversamos a respeito quando lhe perguntei: "Isabel, porque você não deixou a médica te examinar?", e ela me respondeu:

"Eu não gostei que ela mexeu no meu corpo!"

Um minuto de choque. Essa pequena já tem toda essa noção sobre o próprio corpo???


Senti um misto de coisas... Tanto de preocupação pelo que ela poderia perder na vida ao se fechar a novos contatos (físicos, espirituais...) como senti também muito (mas muito mesmo!!!) orgulho por ela já saber que somos donas de nossos corpos como também de nossos desejos, caminhos, escolhas!

Nosso corpo é um lugar, porque damos valor a ele. Nosso lugar sagrado onde nos encontramos, nos reconhecemos por onde também os outros nos conhecem. Mais que isso, é o lugar onde moram os muitos de nós e os outros que nos habitam também. Por meio de nossos corpos também estabelecemos relações, afetamos, somos afetados. Pensamos, sentimos, desejamos, a nós mesmos e aos outros. Ele diz sobre a gente, fala pela gente, se expressa, ou o contrário, nos esconde (ou seria ainda, os escondemos?). De todo modo, marca nosso lugar no mundo, ou melhor, nossos lugares, já que são muitos, somos muitos. Nossos corpos que controlamos não completamente, porque eles também somos movidos por eles. Nosso corpo que carrega nossas marcas, nossas transformações, o ciclo da vida. Nossos corpos vivos, brincantes! E quando não, morremos também. Ou renascemos.


"O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa."
(Eduardo Galeano)


Aceitarmos e gostarmos de nosso corpo diz muito do tipo de pessoa que somos ou queremos nos tornar, uma escolha que nós fazemos, sempre permeada pelo nosso contexto histórico, por isso é tão sério como as sociedades se configuraram no sentido do exercício da tolerância, da igualdade de direitos e reconhecimento das diferenças entre seus indivíduos. Ainda em nosso tempo contemporâneo, portanto, ser e sentir-se dono do próprio corpo é uma atitude extremamente revolucionária. É tomar consciência de tudo que fomos, somos e podemos vir a ser como indivíduos, agrupamentos e espécie.

Nossos corpos que carregam semelhanças, singularidades e outramentos. Que carregam histórias, muitas histórias, nossa ancestralidade, nossa conexão com a natureza, com nossos lados primitivos, selvagens e com o sistema, do qual somos parte tanto quanto outros corpos são.

No caso da luta das mulheres, essa tomada de consciência tem muita importância. Certamente, por exemplo, Isabel, tendo essa percepção incipiente poderá vir a fazer escolhas, hoje e no futuro, mais coerentes com seu jeito e suas crenças! Hoje, por exemplo, vestir em seu corpo o uniforme junto com os irmãos mesmo sabendo que não ia à escola e passar a tarde fazendo carinho nele diz muito sobre o que esta sentindo e querendo marcar.  (aqui me lembrei de um texto de um pai a uma filha que já recomendei por aqui: http://www.pedrinhofonseca.com/doseupai/2015/2/20/irene).

Minha menina já saber disso aos 2 anos e 3 meses - não à toa ela, que é toda dançarina e escaladora de árvores, cheia de movimentos delicados e precisos, apaixonada por saias e rodopios e desafios - me encheu de ânimo para acreditar que ainda em meio a tantos desafios que ainda vivenciamos, já caminhamos muito como humanidade e por isso temos que comemorar! Afinal, essa conquista de percepção sobre si e/com o outro, neste tempo e espaço, não é só dela, é de todos e todas nós, das muitas 'velhas' em que estamos montadas.


“As modernas contadoras de histórias descendem de uma comunidade imensa e antiquíssima composta de santos, trovadores, bardos, griots, cantadoras, chantres, menestréis, vagabundos, megeras e loucos. Uma vez sonhei que estava contando histórias e sentia alguém dando tapinhas no meu pé para me incentivar. Olhei para baixo e vi que estava em pé nos ombros de uma velha que segurava meus tornozelos e sorria para mim. "Não, não" disse-lhe eu. "Venha subir nos meus ombros, já que a senhora é velha e eu sou nova." "Nada disso" insistiu ela. "É assim que deve ser." 

Percebi que ela também estava em pé nos ombros de uma mulher ainda mais velha do que ela, que estava nos ombros de uma mulher usando manto, que estava nos ombros de outra criatura, que estava nos ombros...                                  

Acreditei no que disse a velha do sonho a respeito de como as coisas devem ser. A energia para contar histórias vem daquelas que já se foram. Contar ou ouvir histórias deriva sua energia de uma altíssima coluna de seres humanos interligados através do tempo e do espaço, sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua época, e repletos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo vivida. Se existe uma única fonte das histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente de seres humanos."

(Clarice Pinkola Estès, "Mulheres que correm com os lobos")


Porque, afinal, temos muitas histórias para contar às novas gerações, muito a ensinar do que aprendemos com nossas vivências...

Essas notícias, que pelas forças do universo vieram ao meu encontro hoje, são exemplos disso: "A foto de uma mãe com biquíni inspira outras mulheres a exibirem seus corpos com orgulho" ( http://www.brasilpost.com.br/2015/04/04/mulher-aceitar-proprio-co_n_6999872.html) e "Como vivem as mulheres no país mais igualitário do mundo" (http://blogs.iadb.org/ideacao/2015/03/09/como-vivem-mulheres-pais-mais-igualitario-mundo/).

Do mesmo modo as novas gerações têm muito a nos ensinar sobre vivermos a vida de maneira inteira! Ainda mais as crianças, esses seres que tão bem usam e exploram todas as potencialidades de seus corpos, que se entregam às experiências de sentidos, que mergulham com inteireza na vida... com seus corpos. Que continuem assim... livres!
 
 

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