quinta-feira, 21 de maio de 2015

Cabimentos

Encontro é quando você afeta e/ou é afetado por outro.

Fui afetada pela reunião de pais de minha querida filha Isabel. As palavras, cenas e provocações que ali foram compartilhadas estão me rodeando, buscando encontrar mais frestas para poder fazer caber tudo dentro de mim. Para me alargar, me pôr num movimento produtivo, instigante, dolorido, encantador, revelador, transformador. Tudo muito simples, tudo muito complexo. Tudo muito genuíno de cada pequeno grande gesto de cada pequeno grande ser humano que vivencia diariamente aquele ambiente.

Delícia poder fazer parte um pouquinho também. Ganhar ajudar para ler minha pequena, e consequentemente meus pequenos (aqui de casa e da minha escola). Maravilha poder acompanhar esses processos potentes de criança respeitada em sua infância. Orgulho. Gratidão. Afetos.

Naquela ocasião ganhamos de presente uma música de Arnaldo Antunes como meio de entrarmos em contato com as pesquisas e descobertas das crianças deste grupo. Essa música me tocou, e estou com ela até hoje dentro de mim como um dia meus filhotes também já estiveram.

A música chama-se "Cabimento" e desde então tenho pensado sobre essa palavra, sobre os sentidos que cabem nela, e sobre o 'caber' e o 'não-caber' de todas as coisas:

O que cabe na minha vida, nas minhas escolhas? O que não cabe? O que não tem cabido, mas tenho que fazer caber?

O que não cabia antes, mas agora cabe? O que cabia antes, mas agora não cabe? O que sempre coube?

Em quais lugares e contextos eu caibo, me sinto parte, pertencente? Onde não caibo e não quero vir a caber? Onde não tenho cabido, mas preciso fazer movimento para vir a caber?

Qual espaço disponibilizo dentro de mim para fazer caber a mim próprio, as pessoas queridas, meus ancestrais, a cultura construída por eles, os valores que elegi como essenciais, o modo de vida que busco como ideal? Qual espaço disponibilizo dentro de mim para as pessoas não-queridas, meus preconceitos, meus vícios e comodismo?

Todos nós queremos e devemos caber nesse mundo, e por que o mesmo não tem acontecido? Por que uns cabem e outros não? Por que aceitamos essa situação? Por que não nos empenhamos para todos caberem, transgredimos nossas próprias regras?

Por que pouco nos experimentamos alargados pelo outro? Por que perdemos a chance de vivenciar mais experiências coletivas que dão maior sentido às nossas existências, fazendo-as nem caberem dentro de nós mesmos?

Por que buscamos fazer caber tudo dentro de nós como se estivéssemos organizando uma gaveta de meias e não como se fossemos um grande baú de recordações que cada experiência guarda sua essência e toda memória vira uma narrativa?

E afinal, todas essas ideias têm ou não cabimento?

Agora, talvez o segredo da vida seja justamente as coisas não terem cabimento? Pois não cabendo mais em nós mesmos, nós crescemos...


Uma das experiências mais transformadoras em minha vida foi a maternidade. Fazer caber dentro de mim vida! Lembro-me de ser inundada por um amor tão grande pelo Mateus que vez ou outra eu perguntava a ele: "Onde guardo meu amor por você que já não cabe mais em meu peito?". Desse amor sobrando em abundância nasceu Carolina e Isabel e o que parecia um problema resolvido foi na verdade mais um complicador para o 'caber' desse amor dentro de mim. Por outro lado, aos poucos e cada vez mais, passei a ver essa questão de maneira diferente justamente quando me dei conta do quanto esse amor tem me movido desde então. Assim, passei a agradecer por esse sentimento se espalhar dessa maneira interminável me impelindo a estar viva. Muito viva. E de querer a melhor vida não só para mim, meus filhos, minha família, mas para o mundo. Quando esse amor genuíno nos toma dessa forma ele nos transforma para além... Ele nos convoca a retomar nossa ancestralidade, nos faz sentir parte e o quanto temos de fazer caber todas as crianças e jovens em tudo que já construímos e temos direito de usufruir. E cada vez tomando maior consciência disso, venho lutando e buscando aproveitar a vida junto de seres queridos como meus filhotes que mal cabem em suas roupas de tanto que crescem rápido...


CABIMENTO
(ARNALDO ANTUNES)

 
como uma agulha cabe numa caixa de fósforos
ou num caixão
num palheiro num jardim no bolso de uma pessoa
na multidão
caminhão montanha tudo cabe em seu tamanho
tudo no chão
hoje eu caibo nesse mesmo corpo que já coube
na minha mãe

minha mãe
minha avó
e antes delas minha tataravó
e antes delas um milhão de gerações distantes
dentro de mim

um lugar
num porão
uma cama num colchão
como um átomo num grão
uma estrela na galáxia

como a bala de revólver cabe no revólver
cabe também
numa caixa num buraco bem no centro do alvo
ou em alguém
onde cabem coração cabeça tronco e membros
soltos no ar
como cada gesto cabe no seu movimento
muscular

só nós dois
meu amor
não cabemos em mim ou em você
como toda gente tem que não ter cabimento
para crescer






 

 



 
 


 


 

4 comentários:

  1. Juliana, adorei o relato, tanta coisa que sinto também, tanto amor que também não cabe no peito e o desejo de que todo mundo pudesse sentir isso. Tudo bem se eu citar um trecho (com os devidos créditos) no meu blog? Beijo

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    1. é muito amor mesmo Lívia!!!!!!!! um amor transformador e que precisa ecoar... por isso que super aceito, honrada, essa possibilidade de ser citada!!! beijos grandes

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  2. Ju, você sempre me afeta! Também saí da reunião de pais mexida, revirando meu baú de memórias, ressignificando falas e ações do meu João, pensando em todos os pequenos que um dia passaram por mim e que em muitos ajudei a ter raízes e asas. Foi uma encontro de pais, de adultos que pensam sobre a infância e acreditam na potência deles.
    Demorei a dormir pensando em tudo isso. E feliz por saber que esse Grupo é tão pesquisador, investigador e criativo.
    Obrigada por compartilhar suas reflexões!

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    1. ei querida!!!
      também saí explodindo da reunião e precisei escrever... bom saber que essas questões todas permearam a todos nós e podemos continuar ecoando essa experiência. esses pequenos são demais mesmo, me encheram de orgulho!!! beijão

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