domingo, 6 de setembro de 2015

Outros relatos: Flavia e Andrea Perdigão - A luta

A chegada de tantos pequenos e pequenas, e a luta e coragem de cada um para viver, me fez lembrar de outra luta digna de ser compartilhada, para nos inspirar: a de Daniel, um jovem de 18 anos, filho da amiga Flavia que recentemente passou por um período na U.T.I. Dani nasceu com má formação cerebral e como a própria Fla disse sobre a sua chegada: "Foram anos inquietantes. Mas o amor profundo que toda mãe sente por seu filho sempre estava lá para devolver a calma e a plenitude que costumam ou, pelo menos, deveriam acompanhar a maternidade."

Flavia também é educadora e escritora tal como ela, profunda, sensível e apaixonante. Aqui, vou compartilhar alguns trechos de relatos dessa super mãe durante essa última saga que foi vencida... Um verdadeiro privilégio poder acompanhar essa história e aprender com essa relação como com a maneira como ela lida com o processo das coisas, com as pequenas grandes vitórias e com tudo e todos que estão ao seu redor, mostrando que há muita vida entre as paredes e cortinas do hospital e para além delas...
 

8 de julho
Hoje o Dan será internado para nova troca de remédios. Foram dois anos tentando ajustar a dose dos remédios, sem muito sucesso.
A esperança é que esta nova troca deixe o Dan menos embotado e com as crises mais controladas.
Vamos em frente! E vamos torcer para que a troca aconteça de forma tranquila e meu bonitão fique mais presente na vida!
Vou dando notícias!


27 de julho

Completamos uma semana com o remédio novo e vinte dias de internação. Dan esteve alguns dias mais sonolento, mas parece ter assimilado bem a dosagem inicial (...). O equilíbrio químico é muito difícil! E não tem receita pronta, é tentativa e erro até acertar! Vamos em frente!
Beijos com carinho!

6 agosto
Pessoal, muitas orações! Provavelmente o Dan engasgou com comida, broncoaspirou e está internado na UTI em estado grave. Está entubado e sedado.

12 agosto

Eu acho que eu nunca passei por uma situação tão difícil. Sei que tem um lado bom (que é o da melhora do Dan), mas é muito difícil vê-lo mais acordado e, portanto, mais incomodado com a intubação. Sei que é uma fase passageira e necessária, mas é muito difícil!
Apesar disso, as notícias são muito boas! (...) A fisio até acenou com a possibilidade de extubação amanhã!
Eita menino valente!

18 de agosto
Mais outra conquista! Alta da UTI! Dan já está em um quarto da semi-intensiva! Viva.

22 de agosto
As portas do segundo andar do hospital têm uma pequena janela que permite a rápida visualização do interior do quarto, impede que uma trombada entre pessoas que entram e saem ocorra e possibilita a observação do fluxo do corredor e movimentação do quarto da frente. E assim foi.
Observava o entra e sai. E me indignava com as luzes acesas durante a madrugada e os atendimentos médicos sem hora, nem respeito ao descanso do paciente. Afinal era um senhor que convalescia dentro daquele quarto! Via-lhe somente as pernas, finas e compridas e, pela aparência da pele, era possível supor que se tratava de um idoso.
Passava o dia cercado de familiares. Por vezes, um rapaz que não pertencia à família, pois não era oriental. Muitas vezes o filho, filhas, esposa, netos... Todos orbitavam em torno do patriarca. Era bonito de acompanhar! Ele não ficava um dia sequer sem pessoas que o amavam por perto.
Raramente eu deixava a porta do quarto do Dan aberta, mas qua ndo saía para o corredor (a porta do quarto da frente estava quase sempre aberta), podia ver suas pernas, os familiares no sofá, a entrada dos fisioterapeutas, enfermeiros e médicos e via, na frente da grande janela do quarto, inúmeras dobraduras de papéis coloridos. Imaginei que se tratassem de tsurus, a ave sagrada dos japoneses e que significa muitas vezes, saúde. Era bonito ver a alegria discreta que saia do quarto da frente.
Certa manhã, deixei a porta do quarto do Dan aberta. Meu olhar cruzou com o das duas mulheres que via com maior frequência e que, naquela hora, estavam no corredor. Elas, educadamente, me cumprimentaram. Devolvi o bom dia e facilmente começamos a conversa. Eram as filhas do senhor que se recuperava de vários dias de internação na UTI, depois de um derrame cerebral. Ele estava recebendo alta hospitalar naquele dia. Convidei-as para entrarem em nosso quarto e conhecerem o Dan com seu rádio e sua escultura de fita crepe. Trocamos breves histórias sobre nossas vidas e internações dos nossos queridos.
Através da pequena janela da porta, acompanhei a movimentação no quarto da frente. Não queria perder a saída de meus vizinhos de quarto, pois queria desejar-lhes felicidade e dizer o quanto havia sido tocante ver aquele senhor sempre tão rodeado de afetos e filhos, que ele deveria ser um grande homem.
Vi as despedidas com a equipe de enfermagem e abri a porta para falar com eles. Pela primeira vez vi o rosto do senhor magro e ainda abatido. Uma de suas filhas veio em minha direção, desejei-lhe felicidade e quando ia falar sobre o grande homem que deveria ser seu pai por todo o carinho que o rodeou naqueles dias de internação, ela me surpreendeu com um chocolate para o Dan e a conversa tomou outro rumo diante da gentileza.
Foram embora. Alegres com as conquistas do velho pai. Fiquei com minhas palavras presas na garganta e diante da impossibilidade de dizê-las às filhas do senhor, digo aqui para que nova chance não seja perdida, para que as boas palavras e os gestos de afeto permeiem os nossos dias.

24 de agosto

Alta.

Vitória nessa luta diária pela vida.. Uma luta que é do Dani, da Flavia, de todos. Uma luta que todos nós travamos diariamente, até porque não queremos qualquer vida, mas vida com qualidade. Um vida difícil, mas que vale à pena - ainda mais quando a aproveitamos intensamente e em boa companhia.

Ao fim desse ciclo, a irmã de Flavia, a Andrea, também compartilhou palavras que me tocaram e só reforçam o quanto essa família é repleta de amor, sabedoria e valentia. Dan é mesmo muito sortudo.  

Foi o meu sobrinho Dani e minha irmã Flávia, mãe dele, que me ensinaram o que é o amor em seu estado mais puro. O amor que temos pelos nossos filhos é lindo, forte, selvagem, enraizado no que há de mais legítimo nessa vida, mas também é contaminado por infinitas vaidades. Um filho especial, com os mais variados graus de comprometimentos, costuma ser um golpe em nosso narcisismo, um golpe que só os pais grandes de alma superam. Os acasos microscópicos que acontecem durante uma... gestação, que roubam a absoluta perfeição de cada dobra embrionária que se forma, impedem a necessária precisão temporal para que cada coisa aconteça em seu devido tempo, que altera uma minúscula migração celular ou combinação genética, geram as mais variadas síndromes, parindo bebês diferentes, crianças diferentes, jovens e adultos diferentes num planeta que não acolhe diferenças. No mundo imunológico em que vivemos, na sociedade do desempenho que nos aprisiona, parece sem sentido nascer um ser que provavelmente não produzirá nada no mercado de trabalho. Não se poderá ver o filho ganhando medalhas no campeonato de futebol, não se verá a filha na apresentação de dança em qualquer situação de destaque, o filho não terá dez na sua dissertação de mestrado, não nos dará o orgulho de desfilar com sua vida bem sucedida, não nos dará netos. Esses filhos serão filhos eternos, como escreveu Cristovão Tezza, darão custos altos, trabalho interminável. E ainda sim, nós os queremos e os amamos loucamente. Nós os queremos com saúde e com a sua alegria absolutamente alheia às crises financeiras, às guerras, alheia às angústias que nos tomam tantas vezes - e quantas delas por tão pouco. Livres de nossas projeções paternas, nunca os usaremos para exibirmos a nossa eficiência de pais, nem tão pouco nossa pretensa sapiência. Não há vaidade. Eles só precisam de nossa presença e se alimentam de nosso afeto. Amor sem vestimentas, sem maquiagem; amor sem jogos de poder ou chantagem. Amor em estado puro. E por falar nisso, Dani deve ter alta do hospital nos próximos dias. Sem sequelas. Vivo e dançante como sempre, para nossa imensa e louca alegria. Eu fico feliz que meus filhos tenham o Dani como primo e tenham crescido ao lado dele. Tenho certeza de que o Dani alargou as sua. 
 

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