segunda-feira, 21 de julho de 2014

Quando eu era menina... Homenagem a Rubem Alves

Quando eu era menina a roça era um lugar mágico em minha vida, onde as coisas, as pessoas se transformavam, renasciam, se encontravam.

Em minhas memórias, por exemplo, minha mãe sempre tão preocupada com limpeza e organização, na roça se transformava e ficava mais "cuca fresca". Lindo vê-la assim tão focada nas relações afetivas, nas experiências significativas e no respeito ao processo do outro. Já meu pai, assim que colocava sua calça e chapéu "velhos de guerra" se encontrava com suas raízes mineiras e era só sorriso de orelha a orelha. Lindo vê-lo assim tão mergulhado nessa interação com a terra, com cada cheiro, sabor de fruta, cada gesto de vida.

Nesse espaço, a pé, de bicicleta ou à cavalo eu, meus irmãos, meus primos e amigos ganhávamos o mundo. Saíamos cedinho, voltávamos intuitivamente para a hora do almoço e novamente estávamos ao ar livre. Mesmo à noite era comum brincarmos de pegar vaga-lumes, sapos e morcegos ou nos envolvermos num divertido polícia e ladrão. Infância livre, respeitada, potencializada, extraordinária.

Histórias e mais histórias guardo dessa época ainda que me lembre pouco de situações específicas. Lembro-me sim, e com intensidade, do sentimento e do clima vivido nessa época. Uma lembrança como se fosse uma fotografia em movimento. Vejo a mim e outras crianças interagindo, brincando, se afetando, se tocando numa fluidez de relações harmoniosas, independentes, saudosas. Carrego esse sentimento até hoje, porque realmente foi algo constituinte de mim. Está impregnado em minhas memórias, em minhas construções, preferências e escolhas.

Algumas memórias mais organizadas para serem compartilhadas são de como gostávamos de brincar no meio de um bambuzal à beira da estrada em Jambeiro. Lá, cortávamos bambus, organizávamos os cantos da casa e construíamos lugares para nos sentarmos, cozinharmos e assim fomos aprendendo a planejar as narrativas e muitas vezes a própria preparação do cenário já era nossa brincadeira preferida. Outras vezes ensaiávamos um teatro e que vez ou outra era apresentado aos pais e fomos aprendendo a dar importância para nossos próprios feitos. Outras, subíamos o morro do Cruzeiro, uma baita subida que muitas vezes desistíamos no meio e andávamos por toda a cidade de bicicleta. Numa dessas vezes, descemos a rua a toda velocidade e na hora da curva eu caí e ralei a perna - guardo a cicatriz com carinho até hoje. Na hora, saiu muito sangue e minha prima foi até sua casa trazer algo para eu me limpar. Trouxe uma toalha que ficou com tanto sangue que achamos melhor jogar no lixo para nossas mães não verem e levarmos bronca. Claro que levamos mesmo assim...

Para irmos à roça em grupo tínhamos que ter atenção, pois tinham os "andantes" no caminho, diziam. Uma vez sã e salvos na roça, explorávamos todos os cantos, desde a cascata testando vários jeitos de descer por suas águas, principalmente depois que chovia e a vazão de água aumentava - até a subida à serra, por onde víamos toda a extensão de terras da região além de ter dois lagos à nossa disposição. Em geral, usávamos o que meu avô não estava pescando, já que ele detestava barulho. Uma vez até jogou uma bota em mim, porque deixei escapar uma risada, claro, que não adiantou nada e só dei mais risada, e logo precisei sair correndo com medo de sua reação. Também era comum andarmos pelas fazendas vizinhas, quando parávamos na água santa, uma pequena queda d'água, um ponto de referência, e assim fomos aprendendo o valor dos símbolos passados de geração a geração e dos milagres da natureza que temos que nos conectar e preservar.

Uma vez andando a cavalo, prendi meu pé na barriga do cavalo, um erro, e logo ele começou a saltar incomodado. Caí no chão levando meu irmão Gabriel junto e sempre carreguei essa culpa por tê-lo feito cair também. A culpa só não foi maior porque nessa queda fui eu quem me machuquei mais ganhando um braço quebrado. No parquinho arriscávamos voos altos nos balanços e giros rápidos no gira-gira. A gente comia tudo que era fruta do pé, verde ou madura, carambola era minha preferida. Acho que mais pela raridade de encontrá-la do que pelo sabor.  Quando chovia brincávamos de escritório e escolinha, porque para a gente não tinha tempo ruim, a gente brincava sempre. Brincávamos com todos os bichos: cachorros, vacas, uma vez uma até se apaixonou por mim me seguindo por tudo que é canto, até entrou na casa, meu tio acabou até me dando-a de presente. Não lembro seu nome, mas lembro de outras, a Canela e a égua Tieta. Cada ano escolhemos o nome das vacas na ordem alfabética para sabermos de que ano é cada uma. Recentemente, por exemplo, precisava escolher com a letra R e a nomeei uma bezerra de "Revolução do povo". Lembro uma vez que mataram um porco, cena horrível, o animal não parava de gritar nunca, fiquei um tempão sem comer carne. Já Gabriel se divertiu, tem uma foto dele em cima do porco cortado ao meio.

Fotografias ajudam nesse resgate... Tem um monte de coisa que eu tenho precisamente gravado na memória porque vi a imagem por muitas vezes posteriormente. Muitas dessas imagens revelam essa infância carregada de liberdade, respeito, potência e alegria. Documentações importantes que me ajudam a reconstruir minha história e comunicam os valores e escolhas desse tempo.


Na verdade este texto nasceu após saber, ontem, do falecimento de um grande mestre para mim, Rubem Alves. Suas sábias palavras, principalmente nos livros "Quando eu era menino" e "A alegria de ensinar" me ajudaram a redescobrir minha meninice em meio à natureza e pessoas queridas para me encontrar comigo mesma, nos vários tempos que se seguiram, para fazer minhas escolhas, como ser pedagoga, lutar por uma infância respeitosa e livre a todos, ser mãe e criar meus filhos de maneira coerente com minha história.

É com imensurável alegria que vejo meus filhos brincarem  na roça, mantendo ativo um ciclo de vida de minha família e de nossa humanidade, dando sentido às nossas pequenas histórias que tanto nos engrandecem e nos fazem aproveitar a vida em sua essência, e com muita tristeza me despeço desse grande homem, que nesse plano, encerra seu ciclo, mas só em parte, uma vez que sua obra é tão viva e certamente continuará perdurando e ecoando por muitas gerações de pessoas comprometidas com a vida no seu sentido maior. Que você siga em paz, meu querido, com a sua alegria de sempre. Amo.


Seguem imagens de nossa última viagem à roça em conexão a alguns pensamentos de Rubem Alves...



"As crianças não têm ideias religiosas, mas têm experiências místicas. Experiências místicas não é ver seres de outro mundo. É ver este mundo iluminado pela beleza."
"Quem experimenta a beleza está em comunhão com o sagrado."





"Não tenho problemas com Deus. Mas tenho muitos problemas com aquilo que os homens pensam sobre Deus."
"Deus é alegria. Uma criança é alegria. Deus e uma criança têm isso em comum: ambos sabem que o universo é uma caixa de brinquedos. Deus vê o mundo com os olhos de uma criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar."



"Aprenda a gostar, mas gostar mesmo, das coisas que deve fazer e das pessoas que o cercam. Em pouco tempo descobrirá que a vida é muito boa e que você é uma pessoa querida por todos."



"Somos as coisas que moram dentro de nós. Por isso, há pessoas tão bonitas, não pela cara, mas pela exuberância de seu mundo interior."



"Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado lugar. E, na infinita possibilidade de lugares, na infinita possibilidade de tempos, nossos tempos e nossos lugares coincidiram. E deu-se o encontro."





"Aquilo que o coração ama fica eterno."






"Amar é ter um pássaro pousado no dedo.
Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que,
a qualquer momento, ele pode voar".



"Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses."


  

"Quem sabe que o tempo está fugindo, descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será..."



"A vida não pode ser economizada para amanhã. Acontece sempre no presente."

  

 "O tempo pode ser medido com a batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração."



"Mas é preciso escolher. Porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo, não poderei ler todos os livros que desejo, não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de “abrir mão” – a fim de nos dedicarmos àquilo que é essencial."



"Lutam melhor aqueles que têm sonhos belos. Somente aqueles que contemplam a beleza são capazes de endurecer sem nunca perder a ternura. Guerreiros ternos. Guerreiros que leem poesias. Guerreiros que brincam como criança."


 

"Todo conhecimento começa com o sonho.
O sonho nada mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca da terra sonhada. Mas sonhar é coisa que não se ensina, brota das profundezas do corpo, como a alegria brota das profundezas da terra. Como mestre só posso então lhe dizer uma coisa. Contem-me os seus sonhos para que sonhemos juntos."




"Pois ser mestre é isso: ensinar a felicidade."
"Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido."




"Suspeito que nossas escolas ensinem com muita precisão a ciência de comprar as passagens e arrumar as malas. Mas tenho sérias dúvidas de que elas ensinem os alunos a arte de ver enquanto viajam."




"E bem pode ser que as pessoas descubram no fascínio do conhecimento uma boa razão para viver, se elas forem sábias o bastante para isto, e puderem suportar a convivência com o erro, o não saber e, sobretudo, se não morrer nelas o permanente encanto com o mistério do universo."




"Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas."
"Quem tenta ajudar uma borboleta sair do casulo a mata.
Quem tenta ajudar um broto sair da semente o destrói.
Há certas coisas que não podem ser ajudadas. Tem que acontecer de dentro para fora."
"Os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam serem especialistas em amor: Intérpretes de sonhos."





"Enquanto a sociedade feliz não chega, que haja pelo menos fragmentos de futuro em que a alegria é servida como sacramento, para que as crianças aprendam que o mundo pode ser diferente. Que a escola, ela mesma, seja um fragmento do futuro..."

"Ao final de nossas longas andanças, chegamos finalmente ao lugar. E o vemos então pela primeira vez. Para isso caminhamos a vida inteira: para chegar ao lugar de onde partimos. E, quando chegamos, é surpresa. É como se nunca o tivéssemos visto. Agora, ao final de nossas andanças, nossos olhos são outros, olhos de velhice, de saudade."



 "A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar".



  



Fica a dica para quem ama e sentirá saudades de Rubem Alves. O documentário "Eu, maior": http://www.eumaior.com.br/  . Além de seus tantos livros inspiradores...


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