sábado, 14 de fevereiro de 2015

Sobre aborto

Sou meio devagar para certas coisas, então demorei para entender que algumas mulheres estavam compartilhando fotos de suas gestações no facebook como uma corrente para posicionarem-se contra ou a favor da legalização do aborto.

Não sou muito de participar de correntes, mas nesta resolvi participar, porque essa questão é mesmo muito séria.


Na gravidez de Mateus, 2010, com Luiz

Na gravidez de Carolina e Isabel, 2012, com minha amiga Silvia


Antes de marcar minha posição é importante termos clareza de que na realidade o meu posicionamento, o seu ou das outras pessoas, pouco importam. Aborto não é uma questão de opinião. E sabe por quê?

"Porque as mulheres já abortam, independentemente do que pensemos. Segundo o IAG, Instituto Alan Guttmacher, entidade americana que estuda a questão do aborto no mundo, cerca de 1 milhão de mulheres abortam no Brasil todos os anos. As católicas e as evangélicas abortam; as loiras, as morenas, as afrodescendentes, as pobres, as ricas, as adolescentes, as casadas, as que saem com vários parceiros, as que tiveram apenas uma relação sexual na vida e as que são mães, também. E vão continuar abortando, pois a decisão de interromper uma gravidez é pessoal e envolve várias questões que não podemos controlar.

Mas se as opiniões pessoais não importam, como tratar do problema?" (Dráuzio Varella)

Certamente não é da forma autoritária que o recém eleito presidente da Câmara dos deputados, Eduardo Cunha tratou recentemente ao declarar: "Aborto só vai a votação se passar pelo meu cadáver".

Caro deputado, estamos falando de uma situação real que muitas mulheres têm vivido e com isso, sido criminalizadas ou mesmo sendo mortas por conta das condições precárias em que esses procedimentos foram realizados. Por isso, trata-se de uma questão de saúde pública que merece, no mínimo, ser discutida seriamente por todos os âmbitos da sociedade, principalmente na Câmara, sem julgamentos prévio de valores (vivemos num Estado laico!), para assim avançarmos em nossos acordos sobre nossa vida em grupo.

E cá entre nós, entre o cadáver do Eduardo Cunha e o de milhares de mulheres, é claro que eu fico a favor delas! Principalmente das mais pobres, das muitas Jandira dos Santos Cruz e Elisângela Barbosa, ambas mortas no Rio de Janeiro após realização de abortos clandestinos. Isso porque enquanto uma mulher rica consegue desembolsar uma grande quantia para pagar uma clínica com condições mais razoáveis as pobres fazem uso de clínicas que são verdadeiros açougues. Depois, muitas vezes sofrem complicações sérias decorrentes dos procedimentos mal feitos e direcionam-se para o sistema público de saúde. Assim, se vivêssemos uma situação na qual elas já tivessem recebido uma intervenção legalizada desde o início, sendo tratadas de maneira segura e ética, além de evitar mais sofrimento, certamente o custo para nosso sistema público de saúde seria o mesmo ou até mais barato.

Essas complicações muitas vezes deixam marcas físicas nessas mulheres como, por exemplo, ficarem impossibilitadas de engravidar novamente. Algumas pessoas, principalmente aquelas que acreditam num Deus punitivo que se diverte com nossos inevitáveis erros (esse não é o meu Deus!), costumam dizer que trata-se de um castigo e que elas conseguiram o que queriam, não ter filhos. A questão não é tão simples assim.

Muitas dessas mulheres sonham em ter filhos, mas não naquele contexto, algumas, inclusive, já são mães. Já vi mães que abortaram e são mães amorosas com seus outros filhos e mulheres contra o aborto que não o são com os seus. São diversos os motivos que levam uma mulher a abortar e estes não devem ser o foco maior da discussão sobre legalizar ou não essa prática.

Os motivos que levam uma mulher a abortar apenas nos interessariam para analisarmos, com cuidado e sob diversos pontos de vistas, nossa sociedade. Afinal, se tivéssemos em mãos esses dados (até o momento não os temos precisamente, já que os abortos são feitos ilegalmente) poderíamos saber, por exemplo, se muitas jovens vêm fazendo, em quais contextos, se a gravidez foi gerada de forma violenta, em quais classes sociais, dentre outros. Assim, o poder público poderia planejar medidas adequadas para melhorar cada cenário seja antecipando algumas ações, seja respeitando e cuidando por quem optar em abortar.

Ficarmos preso no julgamento dessas mulheres só piora o clima para nossa vida em comum, aumentando os preconceitos entre nós e dificultando a ampliação de nossos pontos de vistas a partir de nossos encontro com os outros e a prática de ações solidárias para com quem está sofrendo. Por isso também, a justificativa contra o aborto de que este poderá virar um método contraceptivo faz pouco sentido.

Fazer um aborto é uma experiência muito traumática. Ninguém em sã consciência experimenta uma gravidez indesejada só para abortar como também ninguém sonha em fazer um, e se o fez, não conta desse episódio com animação ou leveza. Conheço mulheres, por exemplo, que abortaram e depois, mesmo tendo tido a sorte de apresentarem boas condições para gerarem filhos, não conseguem - tamanho medo possuem de sofrer de novo algo parecido. Marca no corpo, marca na alma.

Sou totalmente à favor da liberdade da mulher de julgamentos, podendo ser dona de seu corpo e seu destino, com livre arbítrio para decidir se quer ser mãe ou não, em cada momento de sua vida. E seja qual for a sua decisão, como cidadã, poder ter o direito a receber todos os cuidados necessários.

É verdade que o cuidado para evitar a gravidez começa antes do ato sexual, mas enquanto não tivermos métodos contraceptivos 100% seguros, meninas e mulheres em situação de violência ou mesmo mal orientadas essa é uma questão que vai continuar existindo: meninas e mulheres engravidando sem desejar.

Eu sou uma mãe convicta... hoje. Antes não, por isso sinceramente não sei o que teria feito caso tivesse engravidado quando ainda não me sentia preparada. Tive a sorte de decidir engravidar, o que foi maravilhoso. O contrário gera um cenário  desfavorável à mãe e também ao filho ou filha. Claro que esse caso não é determinante, pois já vi mulheres que não queriam, mas depois se apaixonaram por seus filhotes criando um laço afetivo forte, uma lindeza! Mudanças que só o amor promovem! O problema é que quando isso não acontece...

É muito triste ver uma mãe ausente do amor para com sua cria. E este cenário gera grandes marcas de violência na criança. Sou também a favor das crianças terem infâncias plenas e saudáveis, com adultos ao seu redor que a desejam. Sortudas aquelas que conseguem ser amparadas por outras mães quando a sua biológica não conseguiu assumir esse lugar afetivo em sua vida. Outra lindeza só! Conheço de perto relações como essas que são de emocionar pela verdade que guardam e pelo poder de transformação humana. Pena que a maioria não consegue e passa a vida toda à margem da sociedade, à margem de si mesmo. Triste, triste.

Acima de tudo, sou a favor da vida.

Há quem entenda que justamente por ser a favor da vida o aborto é inadmissível, pela vida do feto que deixa de existir, o que é mais um sinal de que essa questão é mesmo complexa e delicada, gerando toda essa discussão infindável, porque neste caso não há certo e errado. São opiniões diversas. O que me intriga é quando uma mesma pessoa é contra o aborto e a favor da pena de morte... não vejo sentido!

Realmente um feto deixar de existir é algo real e provoca sentimentos profundos na alma da mulher. Um 'por vir' que deixa de vir. Por isso não consigo exatamente ser a favor do aborto.

Sou a favor da mulher, que ela possa decidir seu caminho. Claro que para isso, anteriormente a essa decisão, é preciso muita reflexão e consciência da mulher, e no caso dela optar por retirá-lo, um luto. Ninguém fica feliz com essa perda, pode ficar aliviada e se convencer que foi o melhor naquele momento, mas feliz não.

Sou mãe realizada, fiz essa escolha, e desde então valorizo ainda mais os nascimentos de bebês queridos  tanto que mantenho com muito orgulho e verdade, a coluna "seja bem vindo(a)" no blog. Ser mãe foi a atitude mais revolucionária que fiz em minha vida, algo que até hoje me modifica e me abre para o mundo, para o comum e o diverso, o real e o mágico, o possível e o impossível.

Na minha história de vida, tenho um super marido e uma super família, meus três filhos são incríveis além de ter outras coisas maravilhosas na minha vida que construí no decorrer, o que torna meu cenário muito favorável. Ainda assim, vivo desafios constantes na maternidade. Não é uma experiência fácil. Digo sempre que foi a coisa mais gostosa de minha vida, mas a mais difícil também. Às vezes fico pensando nas mulheres que são mães em situações desfavoráveis, quantos desafios vivenciam... uma loucura!

Verdadeiras guerreiras são as que superam cada um, principalmente quando lidam também com o "aborto" de seus respectivos homens, pais de seus filhos.

Desde sempre os homens fazem abortos quando desejam. Desaparecem sendo às vezes até elogiados por essa atitude, ao contrário da mulher que é criminalizada quando o faz. Trata-se de mais uma injustiça entre os gêneros, dentre tantas outras explícitas e implícitas, que ainda existem em nossa sociedade tendo a mulher sem opção.

É verdade que com o avanço da ciência, o teste de DNA ajudou a reparar um pouco esse cenário, mas sabemos que não basta um juiz dizer que 'fulano' é pai de 'ciclano' e que ele deve lhe pagar uma pensão para se criar uma relação de afeto entre ambos.

Pela nossa lei (antiga, de 1940), a mulher não tem a opção, tem de levar aquela gestação adiante com o risco de ir para a cadeia, mesmo sem querer, mesmo sendo seu corpo e mesmo tendo sido feito a dois, às vezes sem sua vontade. Essa ideia é perigosa e vai repercutindo em vários outros âmbitos.

Em minha relação com Luiz, muitas vezes tive que marcar para ele o quanto nossos deveres estavam desiguais em nosso cotidiano e nas práticas com nossos filhos. Minha sorte é ter um companheiro com escuta para essas questões e assim pouco a pouco fomos nos acertando, até porque outras vezes é ele quem me ajuda a me rever. Parceria verdadeira é assim.

Marquei muitas coisas para que ele reconhecesse meus feitos não como obrigação de mãe, mas como algo que me dispus a fazer, inclusive, algumas vezes sem querer como, por exemplo, quando acordo pela manhã para ficar com as crianças enquanto ele continua dormindo, e se chego em meu limite quero que ele assuma essa tarefa, pois nas vezes em que acordei não foi bem por vontade própria. Levantei em nome de um bem maior, meu amor e compromisso com meus filhos mesmo ainda tendo sono. Assim, é também pelo compromisso que tenho comigo mesma e com meu marido que discutimos coisas como essa, para que possamos viver novas dinâmicas e sermos modelos de que mudanças são possíveis e nos fazem bem.

A situação contrária é uma mulher presa a um papel que acredita que se espera dela. Mulheres sem opção quando entende-se que nossa função no mundo é meramente reprodutiva e de criação dos filhos, precisando o tempo estarmos dispostas a isso. Crime hediondo em nossa sociedade uma mãe recusar-se a fazer algo pelo filho. Viramos reféns. O que será que ensinamos aos nossos filhos reproduzindo esse modelo? Que submissão é amor? Para mim, amor tem de ser livre para amar.

Também temos que nos posicionar quando nos sentimos violentadas, nos diversos contextos, ou quando a mídia reforça uma imagem de mulher submissa, incapaz de tomar suas próprias decisões ou de ter desejos distintos do que se espera dela como, por exemplo, numa recente propaganda de cerveja para a época do carnaval: "Esqueci o NÃO em casa". Nojo!

Recentemente, também, uma pesquisa revelou que grande parte da população acha que existem mulheres que merecem ser estupradas (!). Na postagem 'mulheres livres' falei sobre isso, quando a mulher é quem sofre a violência e mesmo assim é responsabilizada pelo mesmo, e sobre o amplo apoio popular que Bolsonaro recebeu quando "ofendeu" sua colega ao dizer que ela não merecia ser estuprada. Para deixar claro mais uma vez: mulher que é estuprada é violentada e não elogiada, mulher que não é estuprada é respeitada e não ofendida!

Em muitos aspectos temos que avançar para vivermos num outro modelo de sociedade... Estamos longe, mas vamos que vamos, seguindo acreditando, porque afinal, já avançamos um monte.

Podemos assim nos libertar da ideia de que ser a favor do aborto não significa querer fazê-lo ou que todo mundo o faça. Não podemos banalizar essa questão, por isso para sua viabilização seria necessário um acompanhamento anterior ao ato em si para que a mulher esteja mesmo certa de sua decisão.

Luiz, por exemplo, quando começou a procurar por médicos para fazer vasectomia (uma decisão que foi dele, uma vez que é seu corpo, mas claro que acordada comigo, uma vez que estamos juntos e poderíamos ter desejos distintos), ele fugiu, com razão, daqueles médicos que não conversaram sobre suas razões e o que isso implicaria, mostrando-se apenas interessados em marcar a data da cirurgia. Essa é uma decisão muito séria que exige reflexão sobre tudo envolvido. Por fim, encontrou um médico que se abriu a essa conversa com seriedade e transparência. Esse cuidado que recebeu é o mínimo que as mulheres merecem também quando decidem por abortar, e que por serem feitos clandestinamente elas não recebem, uma vez que não podem falar a respeito.

Por fim, como sugeriu Dráuzio Varella, se você é contra o aborto, simplesmente não o pratique! E como eu, mesmo não sendo exatamente a favor do aborto, seja a favor da mulher decidir livremente, e com o apoio da sociedade, sobre fazê-lo ou não, caso julgue a única saída para sua situação pessoal, recebendo assim todos os cuidados necessários de nossos recursos públicos.

E vamos seguir juntos pensando sobre o modo como temos vivido nossas relações afetivas, sexuais e familiares, para possibilitarmos melhores condições a todos nós.

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