sábado, 24 de outubro de 2015

Sobre a cultura do estupro

Começou mais uma temporada de um reality show de culinária num canal brasileiro, dessa vez com crianças, o que não aprovo. Não acho que lugar de crianças seja nesse tipo de programa competitivo e expositivo, mas aqui quero tratar de outros mais sérios que ocorreram a seguir...

Muitos comentários de homens demonstrando desejo sexual para com uma menina de 12 anos revelaram o quanto a cultura do estupro está viva em nossa sociedade. O termo "novinha" é o mais digitado para acessar pornografia no Brasil...

Revoltante.

"Vamos deixar algo claro desde o começo: qualquer tipo de relação de natureza sexual com uma criança é estupro. Uma criança nunca pode ter uma relação sexual consensual porque ela é criança e não pode tomar esse tipo de decisão. Por lei. Vamos dar o nome certo às coisas. Aqui não estamos falando de pedofilia, que é uma doença que pode ser tratada antes que a pessoa cometa qualquer crime — seja ele consumir pornografia infantil ou o estupro. Nenhum desses homens que comentou sobre a MasterChef é doente, eles apenas acham que têm o direito de falar absurdos como esse porque olham para ela e não enxergam uma criança, mas uma mulher."  
(Carol Patrocinio. Texto maravilhoso na íntegra: https://medium.com/@carolpatrocinio/quando-uma-menina-de-12-anos-no-masterchef-jr-desperta-o-desejo-de-homens-adultos-precisamos-falar-503567b2778d#.wgbkelch7)

Mais uma vez coloco-me em defesa da infância.

Uma criança precisa ser olhada de um jeito respeitoso e ético, sendo assegurada em seu direito de se desenvolver no seu ritmo, expressando todas seus pensamentos e sentimentos acerca do mundo até vivê-lo autonomamente.

Vamos parar de tratar esses comentários como "pouca coisa", porque não o são. Eles revelam muito o modelo de sociedade que ainda vivemos: machista, anti ético e retrógrado.

Nossa sociedade vai criando, dia após dia, uma maneira de aumentar a vulnerabilidade feminina. E o sexo é a mais rápida delas. Meninas são incentivadas a ter relacionamentos com homens mais velhos porque elas são muito maduras para a idade. Mulheres engravidam, então socialmente diz-se que a responsabilidade pelo bebê é apenas delas. O aborto é proibido — mesmo acontecendo em números alarmantes em todas as classes sociais e regiões. Homens mais velhos sabem como guiar meninas a fazer o que eles querem. Mães adolescentes largam a escola, não fazem faculdade e contentam-se com subempregos porque precisam sustentar seus filhos. Além de tudo essas mulheres, que foram meninas vítimas da cultura do estupro, são tidas como vagabundas.
(Carol Patrocinio. Texto maravilhoso na íntegra: https://medium.com/@carolpatrocinio/quando-uma-menina-de-12-anos-no-masterchef-jr-desperta-o-desejo-de-homens-adultos-precisamos-falar-503567b2778d#.wgbkelch7)

Parece papo de feminista exagerada? Queria eu que fosse, mas não é.

Ainda nesta semana, outro acontecimento grave, o deputado Eduardo Cunha (sim, ele de novo!) conseguiu aprovar mais uma medida que nos faz caminhar para trás...

"Hoje, 21, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 5069/2013, de autoria do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que torna crime anunciar, induzir ao uso, ou fornecer meios ou substâncias abortivas a uma gestante, mesmo em caso de estupro. Além disso, o projeto torna obrigatório que mulheres que afirmem terem sido estupradas façam um boletim de ocorrência e exame de corpo de delito para que "comprovem" que estão falando a verdade. Por último, a proposta ainda altera o item que possibilita que a mulher receba pílulas do dia seguinte para evitar uma gravidez em caso de estupro – a chamada profilaxia da gravidez." 
(http://www.justificando.com/2015/10/21/aprovado-na-ccj-projeto-de-cunha-que-dificulta-mulheres-estupradas-realizem-aborto-/)

Já escrevi sobre o que acho do aborto na postagem (http://jujuviroumamae.blogspot.com.br/2015/02/a-favor-da-vida-favor-do-aborto.html).  De todo modo, o que vale aqui é dar o direito a uma mulher decidir sobre seu próprio corpo, principalmente quando o mesmo foi violentado. Essa é mais uma prova da cultura do estupro como se ele não causasse danos, fosse algo justificável, aceitável ao invés de repudiado.

O desejo é responsabilidade de quem o sente e não de quem o desperta. Quando um adulto sente desejo por uma criança é ele o culpado por ir contra uma norma social que protege a infância, a integridade e o corpo de uma incapaz (de acordo com a lei). Porém é muito simples inverter esse raciocínio ao dizer que a menina já tem em si a sexualidade de uma mulher, que ela usa roupas provocativas e que pede atenção masculina. Com essa ideia o homem torna-se a vítima de uma “destruidora de lares” que ainda brinca de boneca, apesar de ter sim sexualidade, ainda que muito diferente da de uma mulher adulta. (...) 
É importante falar sobre a cultura do estupro. Ela anda nas entrelinhas de muitos discursos. Ela caminha ao lado da ideia de que homens não conseguem conter seus instintos. Ela está totalmente ligada ao falso consenso que poderia dar uma criança. Ela é reforçada pela infantilização de mulheres adultas. A impunidade é sua melhor amiga e a culpabilização da vítima sua principal arma.
(Carol Patrocinio. Texto maravilhoso na íntegra: https://medium.com/@carolpatrocinio/quando-uma-menina-de-12-anos-no-masterchef-jr-desperta-o-desejo-de-homens-adultos-precisamos-falar-503567b2778d#.wgbkelch7)

Mulheres corajosas, a seguir, publicaram em um só dia relatos de seus primeiros assédios sexuais, a maioria vindo de familiares que continuaram a ser obrigadas a se relacionar.

30 mil relatos,num só dia! Num só país. Inspirados num único episódio. Você ainda acha que estamos falando de "pouca coisa"? Ou de papo de novela?

Triste.

http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/22/politica/1445529917_555272.html?id_externo_rsoc=FB_CM

Com meu otimismo, por um tempo fiquei achando que esse acontecimento poderia ter servido para tratarmos de uma questão séria, urgente e delicada, e assim avançarmos na tomada de consciência de nossas condutas em nossas interações. Na história da humanidade são às vezes por esses caminhos tortuosos que identificamos nossos problemas e recuperamos nossa sanidade e construímos outros novos, mais justos.

Contudo, no mesmo dia as piadas continuaram a acontecer...


Desânimo.

Mas depois me dei conta que exatamente por essa questão estar emaranhada em nossa cultura um único episódio não bastaria para transformá-lo completamente. Fui ingênua demais. Para tanto será necessário muito barulho ainda. E estou nessa toada porque não compactuo com pessoas que violentam outras, principalmente de crianças. Pelo contrário, como educadora inspiro e respiro o tempo todo para ajudá-las a significarem suas relações de maneiras mais respeitosas assim como mãe e cidadã.


Novo ânimo quando li as palavras desse pai...

É muito difícil manter a alegria no coração, vendo os relatos de abusos e assédios sofridos por tantas mulheres, desde as suas infâncias.
E por mais que eu tenha empatia, eu nunca saberei como é viver uma vida inteira com esse medo. Eu mesmo, quando criança, nunca tive que me preocupar com isso, e isso é apenas um dos privilégios que eu tenho, pelo simples fato de ter nascido homem.

Conhecer essas histórias, inclusive as histórias de amigas tão queridas minhas faz eu sentir uma mistura de indignação e vergonha. Vergonha por ser homem como esses homens, e saber que tantos, mas tantos outros homens fazem isso diariamente. É contra esse machismo que corrói a nossa sociedade que devemos lutar, todos os dias, para sempre.

E aí eu olho meus dois meninos, que nasceram meninos e, dentro dessa sociedade patriarcal, já possuem um número imenso de privilégios. Meninos que se tornarão homens e precisarão continuar a luta contra o machismo, não fazendo parte dele. Renegar esse histórico podre de abusos e poder.
É uma baita responsabilidade, mas se tem uma coisa que eu tenho certeza é que todos os meus esforços estão na criação de meninos que não abusem de meninas. De maneira nenhuma.
(Paizinho, vírgula. https://www.facebook.com/paizinhovirgula/posts/748400018639830?fref=nf) 

Outra coisa que me animou hoje... A questão de gênero foi tema do ENEM!!! Sim, o tema da redação foi: "a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira". Pensar que milhões de jovens pensaram a esse respeito, com seriedade, sem poder profanar bobagens e podendo reconhecer o sinal dado de que essa questão é de suma importância para o tipo de gente queremos formar, finalidade maior que deve ser desse tipo de exame nacional. Orgulho, orgulho, porque afinal, neste exame, os atrasados em todos os sentido, se deram mal... E risos e mais risos das pessoas que identificam essa questão com sendo de esquerda... Ai, ai... Mas vamos seguir caminhando e sonhando com outro mundo.

Por fim na postagem anterior compartilhei a experiência de meus filhos no "Dia das Crianças na roça" simplesmente como uma resposta a esses acontecimentos. Considero essa experiência simples e intensa e pode ser mais uma referência nesse cenário. Nossas crianças merecem ser olhadas, com toda sua potência, e como seus cuidadores devemos nos responsabilizar para que possam explorar ao máximo suas interações com esse mundão, que pode e precisa ficar muito melhor!

Eu acredito. E você?

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